BN – Diálogos Digitais: Relatório de Investigação Criminal não substitui perícia – Thiago Vieira

A reestruturação socioeconômica em torno da informação impactou as rotinas e o trabalho das agências responsáveis pela persecução criminal. 

A sociedade está cedendo de forma voluntária e, por vezes, inconscientemente, grandes quantidades de informações privadas para empresas de marketing. Esses bancos de dados, verdadeiros big datas, serão cada vez mais requisitados para fins de investigação criminal.

Ainda que parte expressiva das informações contidas em um smartphone repouse em bancos de dados de aplicações de internet, o interesse em apreender e examinar esses aparelhos persistirá. É que se popularizou entre os aplicativos de mensagens instantâneas a oferta da criptografia ponta-a-ponta, aumentando, portanto, o desejo de apreender umas das pontas, obtendo assim acesso ao conteúdo descriptografado da comunicação.

O aumento no volume de apreensões de dispositivos informáticos, contudo, não autoriza o descumprimento de normas técnicas e legais. Por isso, não é possível substituir laudos periciais sobre smartphones por Relatórios de Investigação Criminal (RIC) elaborado por policiais civis.

É que o Código de Processo Penal exige a realização de exame pericial (art. 158, CPP), por perito(a) oficial (art. 159, CPP), respeitando-se as regras atinentes à cadeia de custódia (art. 158-A e ss. do CPP). 

Ligar um telefone, abrir o aplicativo de mensagens instantâneas, ler e transcrever o conteúdo são habilidades triviais. Não é preciso ser um expert para executá-las. Mas modificar o conteúdo das informações armazenadas – ainda que involuntariamente – é ainda mais fácil. 

As evidências digitais contidas em aparelhos telefônicos, assim como aquelas produzidas e armazenadas em qualquer outro dispositivo informático, são frágeis por sua própria natureza. Dados e metadados podem ser facilmente alterados, adulterados, suprimidos, inseridos e/ou corrompidos. Identificar tais alterações nem sempre é possível. Por isso, o método de aquisição importa e precisa ser submetido ao contraditório. O manuseio inadequado durante a apreensão e análise desses meios de prova pode torná-los imprestáveis, ainda que a espoliação seja involuntária. 

Por isso, todo o processo de identificação, coleta, aquisição e preservação da evidência digital deve ser conduzido por profissional capacitado e de acordo com os princípios e normas técnicas aplicáveis ao caso concreto, a fim de preservar integridade, fiabilidade, inalterabilidade e auditabilidade desta espécie de prova. 

Estas são atribuições de um(a) perito(a) criminal, a quem compete coletar e preservar as evidências. A extração de mensagens em um aparelho celular, portanto, somente pode ser feita por um perito criminal. 

É neste sentido a orientação do Ministério da Justiça: “a evidência digital deve ser examinada apenas por peritos criminais com treinamento específico para esse propósito”, orientando ainda que, “no caso de órgãos de perícia que tenham auxiliares de perícia, a manipulação de evidências por parte destes dar-se-á somente se devidamente capacitados e supervisionados por peritos criminais” (Procedimento Operacional Padrão do Ministério da Justiça e Secretaria Nacional de Segurança Pública para Exame Pericial de Equipamento Computacional Portátil  – POP nº 3.2).

Os(as) investigadores(as) possuem diversas outras atribuições e competências. Por isso, os Relatórios de Investigação Criminal (Item 05 do Anexo 01 da Instrução Normativa nº. 01, de 17 de abril de 2013 da Polícia Civil, SSP/BA) não contemplam nenhum dos tópicos essenciais para a preservação de uma evidência digital previstos no já citado protocolo estabelecido pelo Ministério da Justiça ou nas demais normas técnicas (ISO nº 27037 – Diretrizes para identificação, coleta, aquisição e preservação de evidência digital; RFC 3227 – Coleta e armazenamento de evidências para Computação Forense).

Não há, nos Relatórios de Investigação Criminal, por exemplo, uma preocupação em documentar e justificar todas as ações realizadas no manuseio da potencial evidência digital, a descrição pormenorizada do material examinado, os softwares utilizados, as ferramentas forenses de extração de dados, a menção a eventuais alterações (físicas ou lógicas) promovidas no material examinado etc. 

A ausência dessas e de outras informações essenciais impossibilita a defesa de avaliar as atividades realizadas. Se não for possível que as partes verifiquem a correição do método científico ou da técnica empregada a prova carecerá de confiabilidade e, por consequência, não deve ser admitida. 

Registre-se que o cuidado com a rastreabilidade das provas produzidas não possui o condão de presumir a boa ou má-fé de agentes estatais, “mas sim de objetivamente definir um procedimento que garanta e acredite a prova independente da problemática em torno do elemento subjetivo do agente” (Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa – 2015). 

Não há nenhum impedimento que sejam elaborados RICs a partir dos laudos periciais dos celulares apreendidos, afinal os(as) investigadores(as) são os(as) primeiros(as) destinatários(as) desta prova e a eles(as) cabe auxiliar a autoridade policial a elucidar os crimes. O que a legislação não admite, contudo, é que sejam utilizados em substituição ao laudo pericial e que as evidências digitais sejam manipuladas sem a observância das normas técnicas.

Artigo originalmente publicado na coluna Diálogos Digitais do jornal Bahia Notícias

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